A mercadoria

As semanas tendem a começar caóticas, pelo menos para mim, e normalmente terminam mais confusas. Bem, essa é a graça da vida, não é mesmo?

A beleza de tudo isso é que eu nunca me acostumo com o caos, então tudo se revela uma surpresa.

Iniciando minha habitual segunda-feira, retornando para cidade para trabalhar, lá estava eu com cara de poucos amigos. Imersa em meu mundo, com fones de ouvidos que impediam que os ruídos atravessassem a minha barreira. Atrasada, decidi que pegar outro meio de transporte clandestino, seria a opção para garantir minha chegada o mais rápido possível.

Ao chegar no ponto, havia uma mulher sondando duas vans idênticas. Foi então que ela se dirigiu a mim e disse:

– Você saberia qual delas irá para BJP?

Retirei os fones e solicitei cordialmente que repetisse a pergunta, e assim ela o fez, prontamente respondi que seria a van que possui a placa da cidade destino. Incrédula ela olhou as placas e agradeceu. Quando estava pronta para imergir no meu mundo ela iniciou uma conversa monologa.

– Você acredita que agora pouco eu estava chegando de Bragança e após alguns minutos que sai do ônibus, me dei conta que havia esquecido uma mercadoria em um dos assentos?

Apenas olhei-a sem nenhuma expressão do caso, afinal, foda-se, porque deveria eu ter compaixão de tal criatura? Ela continuou, enquanto meu botão “foda-se” mantinha ligado.

– Ai quando voltei, o ônibus partiu e eu resolvi embarcar em um táxi, pedi ao motorista para seguir dizendo “Siga aquele ônibus”, mas esses taxistas são muito malandros, eles querem ganhar dinheiro nas nossas costas, já pensou? Ele seguiu um caminho diferente, alegando que chegaria na frente, antes que o ônibus chegasse no próximo ponto. Bem, eu já fui dizendo para ele ser rápido porque eu não tinha muito dinheiro, e nem sei se ele ouviu.

Me mantive olhando para aquela mulher que estava decidida a continuar sua história para uma desconhecida.

– Eu consegui parar o ônibus, mas quando entrei me dei conta que não era o que havia tomado, muito menos tinha a mercadoria. Era um ônibus de turismo, mas menina você acredita era igualzinho ao que eu havia subido? Ai eu voltei para cá né e o malandro não podia de deixar de se aproveitar. Você acredita que ele me disse que a corrida tinha ficado R$ 100,00, mas ele faria por R$ 70,00. Vê se pode! Como vou pagar se ele nem alcançou o ônibus? Onde já se viu pagar por algo que ele não fez!

Ela gesticulava freneticamente com uma bolsa nos braços, o motorista da van chegou e pediu para que entrássemos. A mulher se posicionou ao meu lado.

– Então, ai eu disse pra ele que eu não tinha dinheiro o suficiente. Eu já tinha avisado! Eu iria dar R$ 20,00, mas ele viu que tinha R$ 30,00 nas mãos e eu acabei dando o dinheiro. Sabe, ele não gostou muito não. O que eu ia fazer? Por sorte eu tinha um dinheirinho na bolsa, mas não numa boa fase. Eu trabalho lá em BJP numa campanha eleitoral. A gente ganha R$ 14,00.

A essa altura do campeonato eu alimentei algum interesse pela história, e tive a curiosidade de saber se eram R$ 14,00 o dia, a hora, o minuto, o mês, sei lá, entretanto me contive, isso não me acrescentaria em nada. Minha curiosidade também se estendeu ao que se tratava a tal mercadoria. Será que era material da campanha eleitoral que talvez ela fosse buscar? Algum produto? Até imagine como seria a embalagem: caixa média, parda, leve.

– Mas porque você ao invés de pegar o táxi que realmente sai caro, não pegou um mototáxi? Eles são mais rápidos e cobrariam bem menos. – Eu disse.

– Pois é, mas o táxi estava mais próximo.

– Mentira! – Eu disse a mim mesma, os mototaxistas rondam a rodoviária iguais a urubus, não havia sentido essa afirmação.

Ela continuou e finalmente eu saberia do que se trata a valiosa mercadoria.

– Mas sabe o que acontece… Eu estava na casa da minha irmã, eu fiquei o final de semana lá e não contava com isso, quando saímos à noite, peguei emprestada uma calça dela. Uma calça muito bonita sabe? Hoje eu coloquei a calça na sacola e entrei no ônibus.

Tudo isso por uma calça? Tudo isso por uma calça, uma calça? Sério mesmo? E ela continuou sua fantástica história adivinhando minha descrença.

– Eu e minha irmã emprestamos uma roupa da outra, mas ela não vai entender que eu perdi a calça dela. Era muito bonita e única, não vou encontrar outra igual por ai, mesmo que eu procure muito. Minha irmã ficará muito brava comigo.

De alguma forma fiquei um pouco comovida com aquele monstro da irmã dela, que não compreenderia as desventuras de uma mulher desempregada em busca da calça perdida.

– Porque você não liga na rodoviária de Bragança, talvez por ser apenas uma calça, vá para os achados e perdidos.

Sinceramente, ela deu de ombros e isso me fez crer que nunca ligará.

Como se apiedar dela, não que realmente ela precise de piedade ou compaixão, mas é assim que compartilhamos as coisas, a compaixão é o sentimento que nos persegue durante nossa vida. E quem sou eu para oferecer piedade a alguém?

Ela retornou ao taxista, atribuindo-lhe todas as mazelas sofridas. Ao ver dela, um indivíduo abusivo, que fez uso do desespero para se favorecer.

– Eu disse ao taxista que amanhã traria o restante do dinheiro, pois defini que pagaria mais R$ 30,00 além do que já dei, mas eu não vou pagar nada não, né? Ele me cobrou muito caro, eu dei mais do que ele merecia, afinal ele não alcançou o ônibus.

Quem está errado nessa história toda, o taxista por cobrar pelos serviços, a mulher por embarcar no ônibus e perder a calça, a irmã por supostamente ser inflexível ou eu por ter ouvido essa história? Certo e errado são dois pesos de uma balança, muito relativos e resumir tudo em dois lados limita muito nossas percepções. Então o que dizer sobre isso?

Mas não ache que a história chegou a fim. Talvez esse ato sim, contudo um novo começo entrelaçado emerge.

Ao afirmar que não pagaria mais nada ao taxista, o cobrador da van entra e fecha a porta, o motorista da ignição e a nossa protagonista começa a contar a história a seu velho conhecido, o cobrador, a história se inicia outra vez, com algumas ênfases em trechos específicos e palavras trocadas.

Meu alívio enfim retorna, posso voltar para o meu mundo, coloco meus fones, e pego um livro. Li as três primeiras frases pelo menos cinco vezes. A mulher ao meu lado contava fervorosamente a história. A música foi abafada pelas palavras dela e a concentração que já não era muito boa há semanas foi para o espaço.

Minha polidez me impediu de mudar de banco, senti que seria uma grosseria. A grosseria maior na verdade foi cometida contra mim, com todo aquele esbravejar, porém fui tola e me mantive ao lado dela, sangrando a cada palavra.

No meio da viagem, quando ela chegou a dizer sobre quanto ganhava, a história tomou outro rumo: o da política e trabalhar para ela. Aí tudo foi ladeira abaixo. As amenidades, fofocas e mediocridades de ter posição política e brigar por causa disso começaram a surgir.

Uma das passageiras pediu para repetir quanto ela ganhava e ela assim o fez, a passageira queria saber para quem ela trabalhava.

– Ah, ele me ajudou bastante quando estava necessitada, ele é humilde, ele conversa com a gente. Ele me deu um abraço e a gente ficou conversando…

A passageira chuta o nome do candidato e acerta.

– Sim. Ele paga direitinho, mas sabe o ex-prefeito, essa eleição está perdida para ele, ele só se candidatou para prejudicar esse outro homem tão bom que me ajuda. Eu que não trabalho para o ex-prefeito não, quem garante que ele vai pagar, ele não vai ganhar mesmo.

E ela continuou exaltando as qualidades divinas do candidato para qual ela trabalhava e atualizando para todo mundo sobre os acontecimentos políticos do “boca-em-boca”. Estávamos chegando na rotatória e isso era muito bom.

Eis que em algum momento entre os meus pensamentos furtivos e a falácia, o cobrador disse:

– Vocês ficaram sabendo que tem um candidato que está dando R$ 100,00 para quem votar nele?

– Quem é? – Alguém disse, muitos pensaram, inclusive eu.

– Ah, isso eu não sei, mas eu conheço uma mulher que anda com ele.

– Ah, Pedrinho se souber me avisa. Disse a mulher da calça.

O rapaz assentiu com a cabeça e ela continuou se justificando.

– Eu sei que é pecado e que deus me perdoe pela mentira, eu sou evangélica, mas você sabe como estou precisando do dinheiro. Ainda mais por ter perdido esse dinheiro com o táxi e ter que reembolsar minha irmã. Terminando essas eleições não tenho para onde correr, vou estar sem emprego outra vez.

As palavras ocultas e explícitas nessa frase não combinavam em nada. Eu via um monte de hipocrisia. E me perguntava, os fins justificam os meios?

Ela pagou o cobrador, pediu para a van estacionar e desceu. Minha cabeça estava latejando e os meus dedos coçando para que todas as ideias fossem para o papel.

Cheguei no trabalho, a fumaça do cigarro fazia curva pelas salas, aqui todos fumam, até quem não fuma. A segunda-feira estava começando.

Francine Oliveira Escrito por:

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