Demian, o perturbador romance de Hermann Hesse

“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.”

Esse é apenas um dos trechos de Demian, livro do alemão Hermann Hesse. Escrito em apenas três semanas, em 1919, esse romance pode ser considerado o primeiro grande livro de Hesse, e o caminho que o levou ao famoso e aplaudido Lobo da Estepe de 1927.

Devo confessar a vocês que acompanham as resenhas no Duofox que Demian já havia passado pelas minhas mãos incontáveis vezes ao longo de uns dois anos. Porém, não sei explicar, nunca me dediquei a ler. Fui um tolo. Devo assinar meu atestado de burrice e deixar o link dele abaixo, na descrição.

Demian é um dos poucos livros que li na vida e que me deixaram estarrecido ao término da leitura. Os outros foram, Se um viajante numa noite de inverno, do Italo Calvino e A Sangue Frio, de Truman Capote. O primeiro me surpreendeu pela engenhosa complexidade narrativa e o desfecho sem precedentes. O segundo, pela forma como Capote usa seu talento jornalístico e de escritor para nos contar uma história real sob a forma de romance, com qualidade que beira o absurdo. Mas a questão aqui esclarecer a razão de considerar Demian é um livro perturbador.

Hesse usa no livro a narração em 1ª pessoa. O que não me deixou muito a vontade no começo, pois um ridículo preconceito literário me fez pensar que logo encontraria mais um narrador adolescente  à moda de Holden Caulfield, do Apanhador no Campo de Centeio. É verdade que o protagonista de Salinger tem pontos em comum com o Emil Sinclair, de Hesse, mas em questões de profundidade e complexidade, perde feio o duelo.

Os temas que movem as duas narrativas certamente até possuem certa semelhança. Ambos se enquadram no que podemos chamar de romance de formação ou construção, pois ajudam a moldar o caráter de jovens adolescentes em busca de um lugar no mundo “adulto.” A preparação do corpo e da mente para absorver todos os limites e obrigações de uma sociedade opressora, e que relembrando Rousseau, logo mais vai corromper o indivíduo puro. O modo como narram suas histórias é bem interessante, pois os personagens vão contando suas experiências diante do mundo que corre diante deles. Os conflitos com colegas do colégio, o interesse sexual (a descoberta dele) e toda sorte de moléstias que afetam direta e indiretamente o universo da juventude.

Emil Sinclair vive com sua querida e dedicada família. A religião é um berço para todos, e parece ser muito bem vista pelo espírito juvenil de Sinclair. Entre suas memórias, ele vai relembrando os pontos de sua infância e que acredita terem sido fundamentais para o seu crescimento e pela busca de si mesmo, como o próprio personagem diz em diversas passagens do livro. 

“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro.” 

Em certo ponto da história, no segundo capítulo, intitulado O Sinal de Caim, Emil tem seu primeiro contato com o enigmático e sábio Max Demian, um garoto mais velho do que ele e que vem estudar em sua escola. Num primeiro momento, a figura taciturna e misteriosa do novo garoto desperta certo receio de aproximação em Sinclair. Entretanto, à medida que ambos vão se conhecendo melhor, o véu da inocência de Sinclair se despedaça. A lucidez se opõe ao claustro religioso, o interesse pelo bem e pelo mal, a importância de conhecer a si mesmo para alcançar um estado de alma superior são os temas principais da obra.

Outros pontos despertam atenção no leitor e recaem sobre a figura de Demian. Apesar da pouca idade, ele não aparenta ter a imaturidade de um jovem e muito menos as feições de um garoto. É o que podemos chamar de um garoto-homem. Mente de um homem no corpo de menino. Sua visão sobre as questões da existência, sobre a religiosidade e sobre a importância que cada ser tem dentro do mundo em que habita é formidável. Digna de passagens como essas. 

“Não devemos temer nem julgar ilícito nada do que nossa alma deseja em nós mesmos.” 

“A ave saiu do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo.” 

“Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca.” 

“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro.” 

O crescente envolvimento entre Sinclair e Max torna cada página do livro mais instigante e questionadora. Por que não podemos fazer tudo o que queremos? Por que nossos medos nos limitam? Afinal, o que é o medo? Por que não devemos adorar apenas o lado do bem, sendo que o mal também é uma criação Divina? Essas e outras questões provocam o leitor e nos levam a uma ampla e deliciosa reflexão sobre o que é mais importante em nossas terrenas vidas. Se agradar a todos e andar no caminho da luz, ou se conhecer a nós mesmos e sermos tudo segundo nossas vontades nos tornará indivíduos melhores.

Um livro brilhante, escrita indiscutível e leitura obrigatória, não só para jovens de espírito leve e sonhador, mas também a todos que desejam conhecer melhor a si mesmo. Você deve estar se perguntando, mas o que esse livro tem de tão perturbador. Proponho um desafio. Comece a ler e veja se consegue abandonar a leitura. Termino aqui com uma última frase do livro e que para mim significa muita coisa.

“A maioria das pessoas vive também em sonhos, mas não nos próprios, e aí é que está a diferença.”

 

Felipe Terra Escrito por:

Professor e amante da arte literária, atua na área da educação desde 2011. Viciado na música de Bach, Mozart e Chet Baker, e na literatura de Raymond Chandler, Ross Macdonald e Paul Auster. Ama escrever e acredita que poderia ler mais, porém, precisa dormir, infelizmente. Consegue passar horas jogando pôquer ou xadrez com os amigos. Degustar pizzas de queijo e bacon é um dos passatempos prediletos em horas de fome extrema.

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