As memórias de Kim Gordon em “A Garota da Banda”

A banda saiu em turnê pela América Latina em 2011 e anunciou o seu término ao mesmo tempo em que Thurston Moore e Kim Gordon se separaram. E o tom agressivo e a mágoa raivosa que acompanha todas as páginas deste livro vai além da infidelidade de Thurston por revelar o lugar que ainda é destinado às mulheres. Até as mais descoladas. 

O último show da banda Sonic Youth aconteceu em terras brasileiras, na cidade de Itu. Thurston deu um tapinha nada natural no baixista Mark Ibold e livre, leve, solto e de volta, subiu ao palco para encenar mais uma vez o seu típico ‘momento rock’. Longe das câmeras, ele era obsessivo, culpado e cada vez mais obscuro. Ele e Kim já não se falavam.

Começar pelo fim é uma estratégia sempre muito massa e “aqui pqp” é muito visceral. A Kim rasga a escrita tão bem quanto rasga o vocal, as cordas, a arte e o punk.

Claro que a banda manteve a turnê por causa do contrato já assinado, mas o clima não era nada bom, como vocês podem imaginar. Como a própria equipe evitava falar sobre a separação, a Kim tocou em todos os shows de cada cidade latino-americana com cada vez mais raiva, sem se preocupar com o volume dos amplificadores. Estava distante e cautelosa. Fria e hipersensível.
Kim Gordon

Depois da leitura, fiquei imaginando como ela se sentiu. Talvez como tenha se sentido por toda a infância ao lado de seu irmão Keller, o primeiro homem agressivo e manipulador com quem se envolveu.

A trama sobre a última turnê do Sonic Youth é apenas uma introdução ao mundo de Kim Gordon, que começa em sua infância em Rochester.

A garota Kim se sentia tímida e sensível e o seu irmão Keller que era super destemido e falante a fazia se sentir sempre desprotegida. Ela sentia dificuldade em criar espaços emocionais seguros com outras pessoas por nunca se sentir segura o bastante, inclusive em casa.

O pai era um estudioso da sociologia da educação e um pouco distraído, como todas as pessoas que vivem com os seus pensamentos. A mãe falava pouco, era mais prática, trabalhadora. Havia crescido sob a precariedade da Grande Depressão e para economizar, costurava as roupas da família (inclusive a música “Brave Men Run” relata a passagem da família de Kim para a Califórnia e a dificuldade de sua avó para criar os filhos – o avô ficou anos presos por falsificar cheques e quando saiu, arrumou o único trabalho disponível para ex-presidiários: a venda de lápis.)

Apesar das distâncias sentimentais comuns às famílias, Kim cresceu em escolas bem liberais da UCLA e muito cedo percebeu que seria artista. Mais precisamente aos cinco anos.

Child-kim

Aos dez, começou a sentir o seu lado sensual depois do desaparecimento do espaço entre os dentes da frente e das marcas de catapora, que se misturaram ao bronzeamento. Kim foi crescendo na vegetação rala e espaçada de Los Angeles até se mudar com a família para Hong Kong, colônia inglesa em 1960. O cenário caótico das trocas de mercadorias, o falatório e a amizade com Barry Finnerty, um americano que vivia por lá e aprendia Beatles na guitarra, a fizeram se tornar a adolescente que sempre questionava as autoridades e nunca tinha certeza de nada.

Kim viveu em muitas cidades, entre elas Venice, mas em Nova York se envolveu com instalações, galerias e outros artistas. Entre o amor carnal e sensorial pelos materiais e as percepções sobre as origens do punk, ela nos conta com muita sagacidade a vida na cidade, com o aparecimento de Basquiat e Al Diaz, as greves de lixeiros e a comercialização absurda da arte. Que também acontecia na música.

Nos anos 80, surgiu a corrente No Wave em resposta a New Wave – som comercializável, dançante e melódico (The Police e Talking Heads).

Para Kim, o No Wave (Teenage Jesus e Theoretical Girls) com sua sonoridade abstrata e cheia de energia, a fizeram começar a pensar sobre como fazer música.

A escrita do ensaio “Trash drugs and male bonding” a fizeram escrever as primeiras canções. Escrever sobre como os homens tocavam juntos e obtinham uma conexão invisível mas real, a despertaram para querer sentir também.

Apesar de não cantar quando nova, se envolveu em uma banda bem performática chamada Introjection e em conexão, conheceu outra banda: a Coachmen, de Thurston.

Ele e Kim se conheceram em Connecticut e ele disse depois que havia gostado dos óculos de sol com lentes que levantavam que ela usava. Ele era alto, magro e a tranquila autoconfiança que transmitia criou um brilho para o relacionamento começar. Ele se mudou para Nova York e passou a viver com Kim.

Começaram a produzir logo, mas ela percebeu que não conversaria sobre arte por horas. Saberia depois que a música os conectava e roubava o lugar das palavras.

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Os primeiros ensaios com Lee Ranaldo eram mais zumbidos de guitarra e dedilhados do que composição. Thurston batia na guitarra para marcar o ritmo. O resultado é o EP “Sonic Youth”: trampo com músicas monótonas e vagas, com muito baixo e vocal sussurrado. As letras eram frases aleatórias que eles escreviam e escolhiam na hora de gravar.

Até assinar com a Geffen em 1990, Kim nunca pensou sobre ser mulher no palco ou na música. Ela se sentia autoconfiante por se sentir flutuando, sem corpo. A música era um embalo, um resgate. E pra ela, de uma sensualidade sem tamanho.

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O som espaçado e cheio de transição é uma expressão de Kim a partir de suas experiências com o free jazz, o no wave e o punk, que valorizavam a expressão autêntica sem necessidade de base teórica.

Em 1982, a amizade de Kim com o incrível Dan Graham inspirou  a produção do álbum “Confusion is Sexy”. Dan estudava os shakers e conversava sobre cultos eufóricos. Neste trampo a Kim descobriu que poderia extrapolar a hipersensibilidade.

Com o surgimento dos sintetizadores na Inglaterra, o álbum “Bad Moon Rising” ficou mais fluido, sem pausas entre as músicas e celebra a performatividade de Kim, que no mesmo momento se envolvia com Julie Cafritz no projeto Free Kitten (inspirado em Royal Trux).

Kim conheceu pessoas muito importantes que a levaram a ser quem é – como Raymond Pettibon. Com ele aprendeu que os músicos são diferentes dos artistas porque não intelectualizam todas as coisas.

Em “Evol”, os versos são frases curtas, a sensação é toda composta com reverb e o tempo todo você espera que algo dramático aconteça – mas a música só termina. Kim diz que seus vocais são homenagens constantes às Shangri-las (mais tarde, sua homenagem definitiva seria com “Little trouble girl”). No som “Shadow of a doubt”, ela tenta descrever a sensação de quando os olhos encontram os olhos de outra pessoa.

Se com os respingos do hardcore punk em seu contexto ela aprendeu a quebrar as fronteiras entre o público e a banda, com a The Raincoats, banda inglesa cheia de instrumentos diferentes, ela se afirmou no maior desejo: ser uma pessoa comum fazendo música extraordinária. Recusar o glamour e negar ser a garota da banda, tornaram os próximos álbuns do Sonic Youth crus e imediatos.

O famoso som “Tunic (Song for Karen)” é para Karen Carpenter, que também tinha um irmão controlador. É sempre muito respeitoso quando a Kim fala com mulheres (menos da Courtney Love)

“Queria Karen,  

Durante os anos de especiais de TV dos Carpenters, eu vi você se transformar da menina de olhar inocente de quem-come-biscoitos-com-leite para alguém de olhos fundos e um corpo esguio, à deriva, em um palco cenográfico colorido.

Você e Richard, no final, pareciam drogados – há tão pouca energia. As palavras saem da sua boca, mas seus olhos dizem outra coisa: “me ajude, por favor, estou perdida em minha própria resistência passiva, alguma coisa deu errado. Eu queria desaparecer do controle deles. Meus pais, Richard, os críticos que me chamam de “cadeiruda gorda”. Por eu ter sido, como a maioria das garotas, criada para ser educada e atenciosa, imaginei que ninguém perceberia qualquer coisa errada – desde que por fora eu continuasse a fazer o que era esperado de mim.” (…) Eu preciso te perguntar Karen: quem eram seus exemplos de vida? Sua mãe? Que tipos de livro você gosta de ler? Alguma vez alguém já te fez aquela pergunta – “como é ser uma garota no mundo da música?” Quais eram seus sonhos? Você tinha alguma amiga ou era só você? Alguma vez você correu pela areia, sentindo o oceano passar por suas pernas? Quem é Karen Carpenter realmente, além da menina triste com a voz extraordinariamente bonita e cheia de energia?  

Sua fã – com amor, Kim” p. 185

Quando eu achava que não chegaria mais emoção na minha leitura, a Kim começa a contar sobre o seu encontro com Kurt e a conexão instantânea entre eles. Ela diz que os olhos dele eram lacrimejantes, grandes e pareciam sempre fugir de algo. Seu corpo era frágil e sua força explosiva.

“Eu nunca quis explorar qualquer amizade ou afinidade que eu e Kurt tivemos, e até na sua morte eu quero protegê-lo, e é por isso que eu me sinto estranha até mesmo escrevendo o que escrevi neste livro. Mas, como disse antes, eu penso no Kurt com bastante frequência. Como acontece com gente que morre violentamente, ou muito jovem, nunca há uma resolução ou encerramento. Kurt ainda me acompanha, dentro e fora de mim também, com sua música.” p. 225

Apesar do clima de ambiguidade não discutido entre Thurston e Kim, os dois se mudam para Northampton, uma cidade intelectualizada, liberal e mais rural. E Kim se torna mãe. Até a adolescência de Coco, respondeu de forma não satisfatória às perguntas: “O que é ser uma mulher no rock?” “O que é ser mãe no rock?”

De coração, o carinho que Kim sente por Coco é um dos pontos altos do livro e a emoção em que ela descreve a primeira vez em que assistiu a filha cantar e tocar me tiraram alguns suspiros.

No começo da vida adulta de Coco, algumas mensagens de texto com outra mulher foram encontradas no celular de Thurston, que se tornou um digitador irrefreável.

Kim tentou salvar o casamento milhões de vezes, mas Thurston negava o caso e fazia de novo. Eles decidiram se separar e o que eu achei mais corajoso é que em momento nenhum a Kim deixou de pensar em Coco. Não queria colapsar para não alterar ou influenciar a percepção sobre os homens que a filha desenvolveria, apesar da própria crise de identidade que a maternidade despertava.

Aos poucos, Kim percebeu que a Califórnia e Northampton abrigavam móveis, memórias e pinturas que adornavam uma vida passada, que não representavam mais quem ela queria ser.

Agora, ela quer ser artista visual. E percebi que este livro também é um convite ao exercício de ver da própria paixão artística, de recriar imagens do mundo, de se inspirar com outras vozes e combinar criações.

Em Echo Park, Kim vive sozinha em um apartamento sem mobília e cria outras formas de existir com a sua arte manual, em instalações interativas como “Coming Soon”.

Na música, segue provocando a própria inconsciência corporal fazendo som mais emotivo com as apresentações do Body/Head, seu duo com Bill Nace.

Ficha técnica:
Autora: Kim Gordon
288 pp. | 15x 22 cm
Tradução: Alexandre Matias (site trabalho sujo) e Mariana Moreira Matias
Assuntos: biografia, memórias, diário, música
Selo: Fábrica 231

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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