Atalhos – A Tentação do Fracasso

A guitarra vasculha um acorde com cuidado, repetindo mansamente uma melodia escondida entre diferentes notas, cordas dedilhadas que aos poucos descortinam um timbre elétrico constante, que logo vem seguido do ritmo, marcado pela bateria e acompanhado pelo baixo. Um teclado pontual surge no horizonte e o clima é de estrada, vento batendo na cara, um sol difuso. “Carros, caminhões”, cantarola despreocupadamente o vocalista, guitarrista e compositor Gabriel Soares, “eu vejo passar, homens, sonhos”.

A forma como entramos no novo disco da banda paulista Atalhos já nos tira do universo urbano e preto e branco que o grupo burilou em seus primeiros anos e nos coloca em movimento. Mesmo seu terceiro álbum, Animais Feridos, de 2017, parece desaparecer distante no retrovisor à medida que entramos nesta viagem que é A Tentação do Fracasso, que Gabriel e seu comparsa Conrado Passarelli nos proporcionam.

Mas o quarto disco da Atalhos não é uma viagem metafórica e sim literal: desde o lançamento de seu disco mais recente, a dupla começou a expandir horizontes para além de São Paulo e do próprio Brasil e seu quarto disco nasce como uma road trip pela América Latina. Tanto artística quanto geográfica.

E isso desde o primeiríssimo momento. Em 2019, Gabriel e Conrado resolveram repensar para onde levar o grupo até que o primeiro esbarrou com uma frase em um livro de um escritor peruano: “Os artistas jamais se equivocam, eles somente fracassam”. A frase acertou Gabriel em cheio e o título do diário que Julio Ramón Ribeyro transformou em um de seus livros mais importantes, La Tentación del Fracaso, tornou-se o título da banda antes que qualquer canção fosse escrita – outra mudança foi que elas começaram a nascer na guitarra elétrica e não mais no violão.

A conexão com a América Latina seguiu quase naturalmente quando Gabriel mandou a primeira demo do disco para Ives Sepúlveda, metade do duo chileno de pop psicodélico Holydrug Couple, que não só gostou do que ouviu como empolgou-se para produzir o disco. Gabriel passou mais de um mês em Santiago, onde, junto com Ives, pode aprofundar-se ainda mais nas novas músicas e, no final de 2019, já tinha o disco gravado, levando-o para mixar no estúdio Panda, em Buenos Aires, na Argentina, cidade em que Gabriel já tinha conexões de outras épocas. 

O disco foi masterizado por Greg Calbi, que além de ter trabalhado com ícones da música pop com John Lennon, Lou Reed, Bob Dylan, Bruce Springsteen, David Bowie, Television, Iggy Pop, Blondie, Ramones e Talking Heads, também trabalhou com artistas contemporâneos como Tame Impala, Bon Iver, Strokes, Aimee Mann, Yo La Tengo, Fleet Foxes e New Pornographers, além de ter feito os três discos de uma das bandas que mais inspirou este momento do Atalhos, The War on Drugs. Gabriel pode passar uma tarde ao lado do técnico e começou 2020 pronto para colocar o novo disco no mundo. Mas aí veio a pandemia e…

O disco ficou em estado de hibernação. Mas em vez de ficar vendo o disco parado, esperando a hora de trabalhar, o grupo começou a movimentar-se em duas frentes, ambas ampliando as fronteiras para abraçar o continente latino-americano. Primeiro foi o momento de ampliar sua própria rede de contatos, fazendo conexões com artistas e veículos de outros países latinos, a ponto de fechar o lançamento do disco pelo catalão Costa Futuro, lar de artistas como Juli Giuliani, Los Siberianos, Isla de Caras e do brasiileiro Tagua Tagua. 

Além disso, fizeram colaborações e remixes com artistas como o mexicano Películas Geniales, o vocalista do grupo argentino Mi Amigo Invencible, Mariano Di Cesare (que apresenta-se como El Príncipe Idiota), a dupla de Barcelona Hidrogenesse (que conheceram quando participaram de um programa na rádio norte-americana KEXP), a argentina Delfina Campos e a dupla chilena The Holydrug Couple. 

Além disso, o grupo reabre algumas faixas para a inclusão de participações especiais no disco, que tornam o disco bilíngue: primeiro Delfina Campos entra em “Te Encontrei em SP” e depois Mariano Di Cesare entra em “Teoría del Cuerpo Enamorado”. O envolvimento da banda com a cultura latina chega ao ponto em que Gabriel começa a namorar Delfina depois que os dois gravaram a participação da argentina à distância, encontrando-se pela primeira vez num país que não estava tão acometido pela pandemia, na capital paraguaia Assunção. Foi lá que os dois gravaram o primeiro clipe do disco, ampliando ainda mais o sotaque do novo disco.

E logo após o lançamento, o grupo entra em turnê pelos Estados Unidos e já tem outra turnê, desta vez pela Europa, agendada para o segundo semestre. Caminhando por uma trilha que mistura guitarras dream pop e neopsicodélicas a letras de caráter onírico e emulando um constante movimento, o grupo completa dez anos de lançamentos com seu álbum mais maduro, finalmente com um foco definido – nem que este foco seja apenas o horizonte, prestes a ser desbravado.

Ouça nas principais plataformas digitais: https://orcd.co/atdf

Diego Fernandes Escrito por:

Bebedor desenfreado de café, Diego é desenvolvedor front-end e professor. É o fundador do Duofox. Na literatura não vive sem os russos Tolstói, Dostoiévski e Anton Tchekhov e consegue "perder" tempo com autores da terra do Tio Sam, Raymond Chandler e Melville. Acredita que a arte de maneira geral é a única forma de manter o ser humano pelo menos acordado, longe do limbo que pode levar a humanidade à Encruzilhada das Almas.

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