Desvende Segredos em ‘Venha Ver o Pôr do Sol e Outros Contos da Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles é paulista, mas passou a infância viajando entre cidades do interior, onde seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, era delegado e promotor público. Nessas cidades, Lygia ouvia histórias e depois as contava para os amigos do bairro. Conta que era péssima aluna, mas logo no ensino médio já escrevia suas primeiras narrativas. Mesmo estimulada, desde cedo, por nomes da literatura brasileira – como Drummond e Veríssimo – e a literatura fantástica – de Edgar Allan Poe e Lovecraft – a escritora genial considera o romance Ciranda de Pedra, de 1954, como o seu marco inicial e escurece o olhar quando lhe citam contos ou escritos anteriores.

 Em uma entrevista que encontrei no final do livro “Venha ver o pôr do sol e outros contos”, da editora ática, Lygia conta que seus escritos nascem, muitas vezes, de uma frase que ela mesma disse ou ouviu; depois as retêm e um dia, sem razão aparente, a memória lhe devolve a frase inteira, que tende a se multiplicar em mais palavras. A inspiração está na simples imagem – uma casa, um objeto, uma nuvem. São as observações do cotidiano, as histórias de assombração contadas na infância ou talvez um simples reflexo de uma paisagem na janela de um trem em movimento que a conduzem ao seu maior poder: a palavra.

Em sua criação literária, a autora mais que genial nunca perde o humor nos momentos mais inesperados e de forma intrigante, acaba por revelar muitos detalhes da alma humana sem rebuscamento, sem citação filosófica, apenas com a narração livre, direta, fácil e diária.

Na antologia em questão, alguns de seus contos são fantásticos e consagram o clima nebuloso das grandes histórias de terror, mas o que mais surpreende, é a capacidade de instalar seus personagens já no meio das ações e revelar que as situações em que estão são de fato mágicas, mas também poderiam acontecer ao nosso redor. Em Lygia é possível saborear a essência da literatura fantástica, a que revela coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações projetadas por nossa própria mente ou coisas habituais que talvez ocultem sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora. A autora me colocou em sobreaviso, não apenas com os contos sobre a consciência individual, mas também com o seu romance “As meninas”, que denuncia todo o disfarce da Ditadura Civil-Militar no Brasil. Descobri também que Lygia o escreveu inspirada nas amigas de seu filho Goffredo, hoje cineasta, que frequentavam sua casa com histórias de vida, de transas, de literatura. A escritora é uma observadora das mais admiráveis, disso não tenho dúvida, e talvez por consequência, tenha se aventurado em tantas militâncias durante a vida, como a campanha pela difusão do autor nacional, a luta pela profissionalização do escritor e a defesa do cinema brasileiro na Cinemateca.

Na antologia “Venha ver o pôr do sol e outros contos”, temos oito contos, de diferentes épocas, muito bem diagramados e ilustrados por Dave Santana e Maurício Paraguassu.

Em “O noivo”, Miguel acorda com batidas incessantes na porta e boceja ainda na escuridão. Sua governanta Emília lhe apressa para o seu casamento, que apesar dos sinais evidentes (fraque disposto na poltrona, maleta da lua de mel pronta, presentes na sala) é de total esquecimento dele. Com quem se casaria? Até onde e com quem, havia se comprometido? É loucura recusar a realidade ou compactuar com ela?

“Natal na barca” é um conto impactante com apenas quatro personagens, o silêncio da embarcação e a escuridão do mar. Ao encontrar uma mulher misteriosa, moradora de Lucena, o narrador se coloca em uma situação ambígua: a morte está ao seu lado ou é apenas impressão?

“Venha ver o pôr do sol” é o meu conto favorito e conta a história de Raquel e Ricardo, dois ex-namorados, que se encontram pela última vez, em um cemitério abandonado. Por que ele a levara para um lugar onde a morte se isolou completamente? Por que o olhar de Ricardo vacilava entre o malicioso e o ingênuo? Por que Raquel já não sorria mais?

“As formigas” é o meu segundo conto favorito “rs” e seu cenário é uma típica hospedagem barata, com janelas quebradas e uma proprietária fumante, de esmalte vermelho descascado. Alugada por duas garotas, uma estudante de medicina, o quarto do sótão esconde um segredo. No meio da noite, formigas são vistas juntas e em marcha, sem trilha de volta, e vão até um caixote de ossos de anão, deixado pelo último inquilino. O que fazem lá dentro? Como a pilha de ossos se moveu? Por que pela manhã, a trilha desaparecia?

“O Jardim Selvagem” tem um humor perfeito e conta a misteriosa história do tio Ed, que se casa com Daniela, uma mulher que nunca tira a luva da mão direita, independentemente da situação – até na cascata, nua, toma banho com luva de borracha. Que tipo de acidente a faz agir assim? Por que seus olhos azuis mudam de cor sempre que está com raiva?

“Biruta” é o conto mais triste da antologia e revela o cuidado e a sensibilidade de Lygia para explorar temas como a solidão da orfandade.

Em “Antes do baile verde” Tatisa se divide entre colocar lantejoulas no saiote para ir ao baile ou ficar com o pai doente em casa. De unhas pintadas de verde, a garota dialoga com Lu, sua governanta, e tenta convencê-la a ficar em seu lugar.

“O menino” é um conto que nos faz estremecer pelo encantamento de um filho pela beleza da mãe. Que violências ele poderia cometer por ser seu filho, e não o seu amante?

Infelizmente, a nossa dama da literatura brasileira, que era amiga de Clarice, de Hilda e de tantas de nós, morreu no dia 3 de abril de 2022, em São Paulo, mas seu sonho sempre estará nas palavras e nas nuvens.

 

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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