Milan Kundera e a busca pela identidade em ‘A Insustentável Leveza do Ser’

Publicado na edição de bolso da Companhia das Letras, o romance tcheco de 307 páginas é dividido em sete partes com textos curtos e diretos. A escrita é fluida apesar do hype filosófico. Sim, Kundera mistura ficção com nomes famosos da nossa história (Nietzsche, Beethoven, Parmênides, Robespierre), mas por incrível que pareça, não é pedante. Ajuda a conduzir as reflexões de cada personagem e ainda justifica as suas ações. Traduzido em mais de trinta idiomas, ocupa os enredos eróticos-amorosos mais famosos da literatura e é aclamado por sua descrição política. 

Milan Kundera é romancista e pensador de renome internacional e entre suas obras estão “A ignorância”, “A vida está em outro lugar” e “A festa da insignificância”. Vive na França desde 1975. 

Os temas dos relacionamentos humanos, do amor, da traição e da política são explorados por quatro personagens: Tereza, Tomas, Sabina e Franz. Temos também Karenin, cadela adotada por Tomas e Tereza que desempenha um papel sublime na construção dos dois, mais ainda de Tereza.

Tereza e Tomas se conhecem em Boemia. Ele é um cirurgião, ela uma garçonete. Se apaixonam rapidamente. Tomas defende a amizade erótica, livre de sentimentalismos e direitos sobre o outro e Tereza, a fidelidade do amor romântico. São opostos em quase tudo, mas acabam por viver juntos.

Tereza nasce da inconciliável dualidade entre o corpo e a alma e por ser viciada em espelhos, acaba por se mirar em muitas cenas do livro. Em seu reflexo, esquece que o corpo é um painel de mecanismos físicos e parte na busca de sua alma. Lhe agradaria ser uma tábua rasa, longe de expressões maternas. Ser por si só. Ser Tereza. Mas ela se reconhece fraca, como peso negativo. Pensa que o corpo é uma ruína que provoca a fraqueza de cada um. Teria o seu, direito de se chamar Tereza?

As reflexões de cada personagem sobre a própria vida e o amor se misturam com pensamentos filosóficos: O peso é insustentável ou a leveza?

Tereza sabe das infidelidades de Tomas. Sonha com suas possíveis amantes, vive o tormento de sentir o cheiro de sexo nos cabelos do companheiro e se desespera a cada noite, sem conseguir dormir sem suar e sem sofrer. Mas o ama. O consola. Tomas por outro lado, foge do amor, do compromisso, do peso da presença diária. É livre como Sabina, sua amante mais frequente e personagem recorrente do romance. Em um dos recortes mais lindos (Terceira Parte: as palavras incompreendidas), Sabina, que também é amante de Franz, descreve que a infidelidade é uma forma de criar intimidade, longe do olhar público. A leveza de Sabina se mistura ao teor político do momento, onde mulheres tchecas de minissaia protestam contra a castidade dos invasores russos.

E por falar em política, as reações de Kundera ao regime comunista não são apenas duras, diretas e contrárias, mas também formativas para os casos amorosos de cada personagem. Não há permanência e nem predestinação em nada, apenas interferência da conjuntura social, econômica e política.

A vida de Tomas é afetada diretamente pelo regime – perseguição de intelectuais, censura nas publicações, gravações secretas, filmagens da polícia secreta, fim da individualidade. Depois de publicar uma crítica na seção de comentários de uma revista, tem seu texto cortado e modificado. Ao negar se retificar perante o governo, perde seu cargo de cirurgião e livre do imperativo do trabalho, vive sua liberdade com mais traições. Para ele, a atração que sente pelo feminino é a busca em desvendar a dessemelhança de cada mulher, o mínimo de diferença que só pode ser visto na sexualidade, que é privada. Assim como na medicina, o corpo feminino deveria ser desvendado, descoberto e conquistado com a precisão de um bisturi.

Em cada mudança de cidade, de profissão, de casal, o livro pergunta: o que é pesado? O que é leve? É possível escolher?

Impressões (com spoiler)

Li esse romance aos 17 e não lembrava quanto drama desnecessário existe! Continuo curtindo a leitura não linear e o ponto de vista de cada personagem. As partes I e II (a leveza e o peso; a alma e o corpo) são os melhores recortes pra entender o encontro de Tomas e Tereza – inclusive é narrada a mesma cena, sob a ótica de cada um. Mas a dependência absurda da garçonete-fotógrafa é demais pra mim.

O tempo todo rola culpa da personagem, principalmente no final, quando Tomas é visto agachado arrumando um trator e Tereza percebe o envelhecimento do amado. Ela se sente responsável pela infelicidade de Tomas, por seu emprego perdido, por sua vida no campo longe de outras mulheres. Tereza sempre quis elevar a alma, ser amada e ser única, mas acaba seduzida pela vertigem do fracasso, da solidão. É, aliás no final, uma das cenas mais chocantes: Tereza compara o amor que sente pela cadela Karenin, que seria livre de relações de força e poder vs o amor por Tomas, que é sempre mantido pela dúvida, pela incerteza do afeto.

Gosto muito da tentativa de ser corpo que Tereza opera durante a narrativa (traição com o engenheiro misterioso) e uma das minhas citações favoritas é a crueza que sente ao se sentar em uma privada depois da tentativa falha de ser infiel:

“as privadas dos banheiros modernos se erguem do chão como a flor branca do nenúfar. O arquiteto faz o impossível para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem ignore o que acontece com os dejetos de suas entranhas quando a água da descarga os expulsa gorgolejando. Os canos dos esgotos, ainda que seus tentáculos cheguem até nossos apartamentos, são cuidadosamente escondidos de nossos olhares e nada sabemos acerca dessas invisíveis Venezas de merda sobre as quais estão construídos os nossos banheiros, nossos quartos de dormir, nossos salões de festas e nossos parlamentos” (p.154)

Entendo que Kundera quis classificar (assim como faz com muitos temas) a diferença entre pessoas da alma e pessoas do corpo. Mas as afirmações que saem da personagem Tereza são intragáveis: “o amor é quando a mulher está apavorada e não pode resistir ao homem que a chama”. Brega. Me irritou profundamente o asco que Tereza sente o tempo todo por outras mulheres (a cena em que compara a gentileza dos homens em abaixar o guarda-chuva quando outros passam em um dia chuvoso vs a brutalidade que as mulheres dirigem umas às outras sem baixa-lo). Ela sente medo das outras, como possíveis amantes de Tomas, mas não deixa de ser evidente a rivalidade que o livro constrói das personagens femininas. Como inimigas em potencial, se perguntam: quem demonstrará fraqueza primeiro? Breguice pura.

O personagem Franz nem sei o que dizer, consegue ser pior que o Tomas, que já é uma presença horripilante de tão misógino. Ele é mimado, não entende o erótico presente no chapéu-coco de Sabina, é um acadêmico frustrado e ainda se relaciona com garotas mais novas só para criar um amor paternal doentio que o faz se sentir superior. O final do personagem é um dos mais sem graça que já li. 

Ainda bem que nesse balaio todo, tem a Sabina e o Karenin. Amo a história de vida da Sabina, a traição que opera com o pai – um comunista que a força a viver o regime – a pira por cemitérios como jardins de paz, o gosto pela arte cubista proibida pelo governo, a descrição incrível que ela faz do sexo de olhos abertos vs o sexo de olhos fechados, o encanto pela irregularidade arquitetônica das cidades americanas, etc. Além de artista (a cena da fresta de tinta vermelha que escorre sem querer por sua tela é uma das citações mais bonitas!), ela é sensual e de uma sensibilidade tamanha. Destaco o trecho em que decide ir embora de Praga para Paris:

“amou-o (Franz) naquela noite com mais ardor do que nunca, excitada com a ideia de que era a última vez. Amava-o e já estava em outro lugar, longe dali. De novo, ouvia soar ao longe a trombeta de ouro da traição e sabia ser incapaz de resistir àquela voz. Parecia que diante dela se abria um espaço de liberdade ainda imenso, e a imensidão desse espaço a excitava. Amava Franz loucamente, selvagemente, como jamais amara. (…) Um sobre o outro, ambos cavalgavam. Iam ambos em direção às distâncias que desejavam. Aturdiam-se ambos numa traição que os libertava. Franz cavalgava Sabina e traía sua mulher, Sabina cavalgava Franz e traía Franz” (p.117)

Apesar das breguices – principalmente as de Tomas – a narrativa ainda é bem envolvente e a escolha de priorizar cada personagem a partir de suas formas de pensar, viver e sentir é surpreendente. Leitura foda pra entender (ou tentar) as contradições de cada entranha humana.

Ficha Técnica:
Título Original: Nesnesitelná lehkost bytí
Data da publicação: 1982
Autor: Milan Kundera
País de Publicação: França (mas em idioma tcheco)
Gênero: Romance filosófico

 

 

 

 

 

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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