A culpa foi do Miles Davis

Culpar alguém é sempre mais fácil do que assumir a bronca. Dia após dia é isso o que acontece. Para mim foi fácil colocar a culpa no Miles Davis, assim como para todo mundo. Sim, fácil, pois ele parecia enxergar somente o lado bom e honesto das pessoas à sua volta. E isso era um risco sempre.

Miles Davis limpava sempre o balcão da padaria com a cara fechada, sem risos soltos. Alto, largo e com um cabelo estiloso, atraía menos moscas do que gente. Atendia de pronto logo que gritavam seu nome. Miles isso, Davis aquilo. Quero um café clarinho, quero um café amargo. Vida que segue e histórias que brotam.

Noutro dia, sentado para tomar o café antes de ir coçar o saco na repartição, me engalfinhei num papo matutino com o dono do lugar. Miles Davis não estava nesse dia. Coisa rara.

O governo só fode com tudo mesmo, desabafou o Almir. Só balanço a cabeça. Costume velho. Desabafo vai e vem, pra fechar a conta, quis saber do Davis. Ele sumiu por ai, disse o Almir cheio de aspereza no peito. Foi embora e deixou só um bilhete no balcão.

Minha hora estava dando, mas a curiosidade tinha lá seu valor. Bilhete? Sim. Almir jogou sobre o balcão sebento um guardanapo com uma letra garranchosa, porém legível.

“Precisei voltar pra minha terra. Tem coisas mais importantes por lá. Não tenho nada contra ninguém daqui. Só preciso ver minha família. Um dia, quem sabe, broto aqui de novo. Ah! Se perguntarem quem limpou o caixa ontem, no final do dia, pode dizer que foi o Miles Davis, afinal, a culpa é sempre dele, nunca pensam em outra pessoa.” Fui entender tudo ao final.

A padaria estava sendo roubada fazia um tempo. Demoraram a dar conta. Quando deram, foram logo de punho pra cima do Davis. Perdoaram e seguiram em frente, só que a mágoa ficou lá, morando dentro dele.

Entretanto, da última vez, antes na verdade, de acontecer de novo, Miles já tinha dado no pé. Não sobraria pra ele dessa vez. Muito sabido ele.

Agora, toda vez que passo em frente a padaria e olho para o balcão deserto, lembro, com tristeza e compaixão, de que a culpa na verdade foi do Miles Davis. Culpa por confiar nas pessoas que só mereciam as moscas do balcão.

Felipe Terra Escrito por:

Professor e amante da arte literária, atua na área da educação desde 2011. Viciado na música de Bach, Mozart e Chet Baker, e na literatura de Raymond Chandler, Ross Macdonald e Paul Auster. Ama escrever e acredita que poderia ler mais, porém, precisa dormir, infelizmente. Consegue passar horas jogando pôquer ou xadrez com os amigos. Degustar pizzas de queijo e bacon é um dos passatempos prediletos em horas de fome extrema.

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