Amor, Sociedade e Convenções: Uma Jornada por Orgulho e Preconceito de Jane Austen

O romance “Orgulho e Preconceito” (Landmark, 2008, 406 págs.) começa com a chegada de Sr. Bingley e Mr. Darcy, cavalheiros solteiros e ricos, vindos de Londres a Longbourn. A mãe da família Bennet os vê com entusiasmo e os convida para jantares, sempre com o objetivo de casar uma das filhas. Acontece que o romance narra os rumos diferentes de cada uma – a inclinação de Lydia por oficiais, a reserva de Jane, a pouca vontade de Lizzie em se casar e as opiniões potentes de Mary, a mais estudiosa das irmãs.

À primeira vista, pode parecer um livro velho (a primeira edição é de 1813) que se constrói apenas na tradição romântica do século XIX com cenas idílicas no campo (convites para jantares e chás; Lizzie conversa com Darcy enquanto caminham em bosques abertos), homens impetuosos (O Sr. Bingley aparece a primeira vez de casaco azul e corcel negro), dotes femininos muito solicitados (Mary é estudante de baixo cifrado e grande leitora), danças coreografadas em bailes e temporadas de visitas (estadia de Jane em Netherfield e Londres; visita de Lizzie a Pemberley) e sim, é isso mesmo. Mas o encontro das duas almas que se casam no final (típico romance) percorre por tramas que escondem (e revelam) padrões de vaidade, ambição e opinião pública.

Com Jane Austen (1775-1817) aprendemos que na virada do século XVIII para o XIX, as capacidades entre homens e mulheres eram naturalmente diferenciadas, principalmente em relação à educação, negócios e posturas sociais. Noções mais complexas de ensino não se destinavam às mulheres e apenas famílias possuidoras de governantas ou bibliotecas avançavam no conhecimento teórico. Somente, a partir de 1850, faculdades passaram a oferecer vagas para o sexo feminino, como a Oxford e Cambridge. Jane Austen não se casou, mas frequentou classes para meninos com Cassandra, sua irmã. Seu pai, como o Sr. Bennet, possuía uma vasta biblioteca e ainda ministrava aulas na paróquia do bairro.

O que mais gostei é como Jane Austen cria personagens femininas produtoras de ação. As mulheres estão, sobretudo, pensando e falando – ou sozinhas ou com outras – e são, elas mesmas, criadoras de diálogos e situações. É Lizzie quem quebra o gelo na primeira dança com Mr. Darcy. Ela também recusa o Sr. Collins, um primo muito chato da família que vêm para Longbourn, onde a família Bennet vive, para se recomendar. Ele é cheio de auto importância, civilidade aguda, é clérigo e sempre fala da cortesia de Lady Catherine (que não passa de indulgência), sua patrocinadora. A recomendação é uma forma de prevenir a família Bennet, já que sua propriedade seria repassada a ele. 

“(…) Eu lhe asseguro, senhor, de que não tenho pretensão alguma quanto a esse tipo de elegância que consiste em atormentar um homem respeitável. Eu preferiria ser considerada uma pessoa sincera. Agradeço-lhe muito pela honra que você me fez com as suas propostas, mas aceitá-las é completamente impossível. Meus sentimentos me proibem em todos os aspectos. Posso eu ser mais clara? Não me considere, agora, como uma mulher elegante, pretendendo incomodá-lo, mas sim como uma criatura racional, falando a verdade com o coração.” (P. 121)

Nesse contexto, Lizzie também é uma vanguardista quando recusa o pedido de casamento do Sr. Collins por se tratar apenas de uma proposta arranjada, sem amor ou virtude, que serviria apenas para manter a propriedade da família em mãos – visto que as leis inglesas desprotegiam as mulheres ao garantir o direito de propriedade e controle do dinheiro exclusivos aos maridos (Em 1870, após a The Married Women’s Property Act, as mulheres conquistaram o direito de herdar propriedades e outros rendimentos).

O recato da época de Austen não a  impediu de escrever personagens que falam o que desejam e ainda sim são reconhecidos (Depois de Lizzie recusar a proposta de casamento de Collins, ele se admira com a racionalidade de suas opiniões). É potente porque, homens e mulheres também possuíam diferentes formas de lazer e, ao socializar em um baile por exemplo, era proibido para as mulheres conversarem com outros rapazes sem um acompanhante do sexo masculino. Lizzie, pelo contrário, se encontra com outras pessoas para conversar em muitas partes do romance, e sempre com opiniões muito consistentes e assuntos muito variados – música, viagens, literatura. O encontro de Lizzie e Wickham em Meryton é um exemplo e tanto. Ou sua amizade com o coronel Fitzwilliam.

No romance, Elizabeth é observadora, busca entender as motivações de todos ao seu redor e peca por seu próprio orgulho. A vaidade é sua fantasia e a teimosia a faz encorajar sentimentos contrários por Darcy até o recebimento de uma carta dele que a revela toda a verdade – a propensão ao vício de Wickham, suas dívidas em jogos, intrigas no regimento de Meryton e a tentativa em fugir com Georgina, irmã de Darcy, por trinta mil libras. A mudança de sentimentos que se opera na personagem é incrível e ela continua dominando toda a situação, apesar de algumas cenas em que se sente descomposta ou envergonhada. A correção de temperamento do Mr. Darcy – de egoísta e arrogante para amável e respeitável – é substancializada por uma Lizzie madura que se encoraja pela gratidão e estima ao descobrir que Darcy mudou com o ensinamento da espera, a considerando mais de uma vez. A virtude do amor se mostrou gradual; conquistado pela razão aos poucos. Lindo.

Quando Darcy se apaixonou, ele já estava no meio do sentimento, hipnotizado pelo vigor da mente de Lizzie e:

“(…) ela começou, agora, a compreender que ele era exatamente o homem que, em atitude e talento, mais combinava com ela. O entendimento e o temperamento dele, embora diferentes dos dela próprios, teriam correspondido a todos os seus desejos. Era uma união que seria proveitosa para ambos; pela tranquilidade e vivacidade dela, a mente dele seria suavizada, seus modos aprimorados; e, com a ponderação dele, informações e conhecimentos sobre o mundo, ela teria recebido vantagens da maior importância” (p. 323) 

“(…) mas acima de tudo, do respeito de da estima, havia um motivo em sua boa vontade que não poderia ser ignorado. Era a gratidão; gratidão não apenas por ele tê-la amado uma vez, mas por ainda amá-la o suficiente para esquecer toda a petulância e a acrimônia de seus modos ao rejeitá-lo, e todas as injustas acusações que acompanharam a rejeição” (p.277)

Mr. Darcy se transformou enquanto observava as virtudes de Lizzie; são os seus pensamentos, gestos, escolhas e renúncias – e não a beleza, ou não só a beleza – que o convencem de seu amor por ela. É revolucionário, mesmo sob o olhar burguês de Jane Austen, porque é protagonizado por uma mulher intrigante e irônica, que ri, que conversa, que viaja. As transformações que se operam nos dois, e também em outros personagens, é o que torna a narrativa sensível e envolvente. E ao amor, ao ardente amor, isso deveria ser atribuído. 

 

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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