Irmãs do Inhame: mulheres negras e autorrecuperação – Uma Jornada Transformadora

Desde “Tudo sobre Amor: Novas Perspectivas”, não paro de pensar na narrativa de bell hooks e em sua generosidade. Quando li que seu nome era escrito com letras minúsculas para que sua obra fosse maior que sua pessoa, entendi que as páginas seguintes seriam eternas em mim.

“Irmãs do Inhame: Mulheres Negras e Autorrecuperação” foi lançado em 1993 e traduzido para o Brasil 30 anos depois. Há uma lacuna entre as palavras e o tempo, mas é quase imperceptível. Senti que precisava me lembrar de que o contexto retratado no livro não era a realidade atual. O racismo é um bicho antigo, profundo.

Irmãs do Inhame foi um grupo de apoio formado por mulheres negras que vivenciavam o espaço universitário onde Bell ministrava sobre autoras negras, entre elas Toni Bambara. Logo, “este é um livro de uma mulher negra, para mulheres negras, sobre mulheres negras”, como nos conta Ynaê Lopes dos Santos, no prefácio à edição brasileira.

É um livro-mapa, um escrito-testemunho e uma dor revelada entre mulheres. É um caminho com estratégias de autorecuperação partilhadas. Por isso, não quis lê-lo sozinha.

Juntei-me às meninas do Clube de Leituras Decoloniais @leiturasdecoloniais e mergulhei no ciclo compartilhado que possui encontros ao vivo, envio de materiais complementares e uma das comunidades mais acolhedoras em que já estive. Em nossa primeira discussão, me senti mais do que livre para falar do que dói, daquilo que ninguém entende. No último, senti o coração bater mais consciente e atento.

Incorporei práticas de autoafirmação da vida em tão pouco tempo que até carinho no meu rosto eu faço agora. O carinho se estendeu para as minhas mãos, para a minha criança interior e carente, para os ressentimentos que preciso perdoar e para a valorização que preciso fazer nascer em mim.

Como preciso me lembrar de desligar a água antes de ferver, este escrito é um aviso para colocar mais atenção ao que sinto, toco e percebo. São 13 capítulos de suporte e autoatualização.

No primeiro deles, me lembrei do meu avô Guilherme, homem negro, sensível e trabalhador. Quando eu era criança, sentia fortes dores nas pernas, e era ele com suas mãos que sabiam tocar e suas pomadas caseiras, que acolhia e fazia a dor ir embora. Da mesma forma, bell nos conta sobre as tradições secretas da ancestralidade negra, do mundo espiritual e mágico das mulheres de sua família e das visões que sempre afirmaram a vida, o corpo e a terra. Todos em sintonia, em comunhão.

Um dos grandes temas da obra é a relação geográfica e cultural entre o mundo tradicional do sul agrário e o norte industrializado, com sua suposta integração racial. Nesta transição, a comunidade negra perdeu muitos espaços coletivos, como os de contação de histórias, por exemplo. O espaço também ameaçou os laços parentescos, o pensamento positivo da comunidade e o cuidado corporal, já que o corpo negro passou a ter utilidade apenas para o trabalho duro.

E nesta geografia, onde mais de 50% das mulheres negras viviam em estado de tensão emocional, bell nos pergunta: onde encontrar um espaço dentro e fora para nomear as nossas dores e criar hábitos de vida afirmativos? Onde está o poder profundo do inhame, o símbolo de sustentação da vida negra? Como nos nutrir e nos conectar com a diáspora?

No capítulo 2, são os assuntos concretos da vida que se fazem presentes. Para nós, pessoas negras criadas na cultura supremacista branca, quantas vezes ouvimos a crítica dura de nossos pais como um gesto de controle interno? Quantas mães invisibilizam os filhos sob o medo de que não se comportem bem em público? Quantas mulheres confundem o cuidado com a autoridade hierárquica na criação dos filhos?

Pude entender que os golpes emocionais que recebi durante a infância foram tentativas de preparar o meu corpo, que ainda não sabia o que era a pele, para a sociedade branca, hostil e violenta. Aqui, a discussão também é sobre como muitas pessoas negras escolhem a continuidade da sobrevivência material no lugar do amor e do carinho atento.

“A maioria de nós ouviu ‘verdades’ sobre nós mesmas sendo ditas de formas dolorosas e humilhantes. Mas ainda assim, muitas de nós continuam a enxergar as críticas duras como meios de fortalecer o caráter (…) No processo de autocura, nós, mulheres negras, podemos identificar essa voz em nosso interior e começar a substituí-la por uma voz gentil, compassiva e afetuosa” (p.50).

No terceiro capítulo, há uma reflexão sobre como manter a “presença de espírito” quando trabalhamos em ambientes predominantemente brancos e como muitas mulheres negras não conseguem trabalhar em lugares que gostam porque, além de precisarem ganhar dinheiro para sobreviver, ainda sentem que não são dignas de muitas opções. Os moldes dos serviços são estressantes e desumanizantes por serem permeados pelo racismo e sexismo.

“E mais de uma vez percebi que muitas mulheres negras que entrevistei tinham habilidades muito superiores àquelas exigidas pelo trabalho que desempenhavam, mas eram impedidas por sua “falta de instrução”, ou, em alguns casos “falta de experiência”. Isso as impedia regularmente de evoluir. E quando desempenhavam bem as suas funções, elas sentiam uma tensão a mais criada no ambiente de trabalho por pessoas que as supervisionavam e que costumavam considerá-las “muito metidas” (p.57)

A supremacia branca é ardilosa e nos impôs o sentimento de que somos a classe subordinada, e somente com muita coragem conseguiremos sair dessa socialização. E somente com muita ousadia aprenderemos a não ultrapassar os nossos limites.

Provavelmente, você se perguntou ou sentiu o quanto o sistema de dominação interligado (racismo, capitalismo e sexismo) nos impede de exercermos a nossa autonomia, não é mesmo?

Pois o ponto de Bell no capítulo quatro é justamente que as pessoas negras e, mais enfaticamente, as mulheres negras, foram tão bem socializadas a ultrapassar limites (lembrem-se do mito da mulher negra mártir ou mãezona protetora) que agora não sabem como estabelecer barreiras seguras que as protejam do estresse que adoece. E não importa o status profissional ou a ascensão social, viu?

 A maioria das mulheres negras que ascenderam economicamente tem histórias sobre como as pessoas brancas continuam a pensar que trabalhamos para elas como empregadas.

A falta de agência pessoal também nos leva ao vício (tema do capítulo 5). É claro que, desde o sistema escravista, o povo negro experimentou o esquecimento da dor através do abuso de substâncias. Ainda hoje, o alcoolismo está no topo da lista de doenças na África do Sul. Também somos afetados pelos vícios em comida e pela compra compulsiva.

Outro tema que surge no capítulo 6 é a modificação da nossa autoafirmação após o período de integração racial e o surgimento da TV. Dentro dessa sociedade, é quase impossível encontrar imagens afirmativas da feminilidade negra. A origem do autodesprezo está na internalização de pensamentos negativos (“os negros são os mais sujos!”, “a catinga negra é a mais forte”, “a textura do cabelo negro é ruim”). O ideal de branquitude é tão prejudicial que nos faz esquecer das mãos negras de nossas avós, que arrumavam nosso cabelo em tranças.

“E aquelas entre nós que foram socializadas desde a infância para sentir que o “poder pessoal” das mulheres negras só existe por meio do ato de servir a outras pessoas podem ter maiores dificuldades para aprender a ver que o poder pessoal começa, de fato, com o autocuidado” (p.107)

Duas estratégias para superar as representações incapacitantes que temos de nós são:

  1. conhecer e falar sobre brinquedos e livros com imagens diversas e afirmativas de crianças negras;
  2. exercícios físicos e pensamentos afirmativos diários que nos lembrem de não negligenciarmos o nosso corpo – que existe para além da prestação de serviços.

Uma das estratégias de cura do capítulo sete é romper com a negação e a outra é assumir o direito ao prazer curativo. Já que muitas de nós aprendemos que podemos nos proteger da objetificação ao reprimir nossa energia erótica, agora o jogo dos sentidos se tornou muito distante. Ainda meninas, aprendemos que seríamos punidas por sentir prazer. E “quanto menos cuidado recebemos, menos somos capazes de oferecer cuidados”.

“aqui”, ela disse, “neste lugar, somos carne; carne que chora, que ri; carne que dança descalça na grama. Amem essa carne. Amem com força. Lá fora eles não irão amar a carne de vocês. Eles desprezam ela. Eles não amam os olhos de você; capaz de arrancarem seus olhos fora.

Eles também não amam a pele das costas de vocês. Eles só usam elas, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem. Levantem suas mãos e beijem elas. Toquem outras pessoas com elas, passem uma mão na outra, no rosto, porque eles também não amam o rosto de vocês. Vocês é que têm que amar, vocês”! (trecho do livro Amada, Toni Morrison)

A dor psicológica causada pela exploração diária nos incapacitou de sentir. A escravidão nos ensinou a mentir, a dissimular e a colocar tantas máscaras que a dor passou a ser natural.

Ousar reconhecer nossa vida íntima como pessoas que merecem o amor (tema do oitavo e nono capítulo) é movimentar o coração e experimentar situações amorosas.

Os capítulos 10, 11 e 12 se conectam pela noção de “doce comunhão”. Aprendi que só testamos os valores do cuidado em uma comunidade de pessoas amorosas, que cooperam para o nosso crescimento e reconciliação.

Para restaurar o coração partido e nossa capacidade coletiva de organizar a raiva, o cuidado não pode ser algo que nos diminua.

A separação de mente e corpo, atualizada pela cultura niilista, nos impede de tratarmos bem umas às outras e nos impede de enxergarmos beleza em nós. Por outro lado, o trabalho com a terra e o cultivo podem ser estratégias de autorrecuperação de nossa agência e mãos.

O capítulo 13 me agitou para pensar na infância ferida que há em mim e como a escrita pode ser um lugar de cura para acessá-la. Esticar um tapetinho no chão e se deixar levar até o próprio eu pode ser uma forma de encontrar a gritaria ou o silêncio que existe em nós e passar a ouvi-los com generosidade. A atenção plena e a possibilidade de estarmos em espaços contemplativos são convites que deveríamos fazer a nós mesmos.

“quando curamos nossa ferida interior, quando cuidamos da criança interior carente e em busca de amor, nós nos preparamos para integrar a comunidade de forma mais plena. E podemos sentir a totalidade da vida, pois passamos a afirmar plenamente a vida.” (p.221)

Boa leitura e transformação!

Ficha técnica:
Título: Irmãs do Inhame: mulheres negras e autorrecuperação Autora: bell hooks (pseudônimo de Gloria Jean Watkins) Ano de publicação: 1982
Editora: Martins Fontes
Número de páginas: 265

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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