Ivan Denísovitch, um retrato triste e profundo da crueldade humana

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Um dia na vida de Ivan Denísovitch é um profundo e triste relato sobre a crueldade humana. Escrito em 1962, pelo russo Alexandre Soljenítsin, o romance ganhou proporções gigantescas no ano em que foi publicado.

Soljenítsin nasceu em 1918, em Rostov, e cresceu querendo ser escritor. Porém, por conta de problemas familiares, não pode receber educação literária. Sendo assim, acabou ingressando na universidade local onde estudou matemática e mais tarde sendo professor.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Soljenítsin lutou na linha de frente do Exército Vermelho. Em 1945 foi feito prisioneiro, pois censores da época descobriram, numa carta endereçada a um amigo, referências de caráter “difamatório” a Joseph Stalin.

O que lhe rendeu essa carta? Oito anos de trabalhos forçados em um campo correcional na região da Sibéria. Mas esses anos seriam apenas alguns dos quais o autor sofreria nos Gulag, campos de trabalhos forçados. Ao contrário do que se pensa o autor só passou a ter pensamentos contrários à ideologia os anos em cativeiro.

Baseado em suas experiências como prisioneiro em diversos campos de trabalho, Alexandre Soljenítsin escreveu uma série de romances, onde expôs a verdade sobre o que se passava dentro do regime correcional soviético.

Entre seus trabalhos mais aclamados estão Pavilhão de Cancerosos, escrito entre 1966 e 1968, é um de seus textos mais sombrios. Nele, o autor descreve o sofrimento diário de um campo-hospital de cancerosos no Uzbequistão. O nome da obra é bastante sugestivo, pois o próprio Alexandre teve um câncer que, todavia conseguiu vencer.

Arquipélago Gulag, de 1973. É um denso livro documental, de quase 650 páginas, uma narrativa sobre fatos dolorosos vividos pelo autor, prisioneiro durante onze anos, em Kolima, num dos campos do arquipélago, e por outras duzentas e trinta e oito pessoas, que confiaram as suas cartas e relatos a Soljenítsin.

Além de outros trabalhos não menos importantes, encontramos sua obra prima. Um dia na vida de Ivan Denísovitch é um profundo e triste relato sobre a crueldade humana. Escrito em 1962, esse “pequeno Grande” romance ganhou proporções homéricas após sua publicação.

O que Alexandre Soljenítsin, na época com 43 anos nos conta é uma história repleta de absurdos e atrocidades. Para escrever o livro Soljenítsin não precisou coletar nem ler testemunhos de antigos prisioneiros dos campos.

Ele simplesmente viveu cada um dos mais de 3.800 dias de cativeiro. Verdadeiramente, Um dia na vida de Ivan Denísovitch não é um mero relato de sobrevivente. As páginas são um histórico e heróico testemunho sobre a miséria, injustiça e a dor. Uma ode aos seres humanos que, como no título de um livro de Dostoiévski, são diariamente humilhados e ofendidos.

Alexandre Soljenítsin numa de suas passagens pelos campos de trabalho
Alexandre Soljenítsin numa de suas passagens pelos campos de trabalho

A obra toda soa como um grito, um apelo à sociedade mundial e soviética da época, que até a publicação da 1ª edição, não tinha noção do que os homens, entre eles jovens, pais de família e até mesmo idosos com problemas de saúde enfrentavam dentro desses grosseiros e desumanos campos correcionais.

A escrita de Soljenítsin, ao contrário de seus compatriotas, Tolstói e Dostoiévski, é uma escrita limpa, solta e direta. Através da narrativa de Soljenítsin somos transportados às congelantes estepes de um campo de trabalhos em Caranga, norte do Cazaquistão.

Nesse campo, conhecemos Ivan Denísovitch Chukhov, um homem calejado por ter sido preso em outros tempos e ter lutado na frente durante a Segunda Guerra, mas acaba caindo nas garras do Kremlin graças a uma acusação absurda de espionagem alemã. Chukhov fora capturado pelos nazistas durante uma batalha territorial.

Ivan Denísovitch era inocente, mas recebeu uma dura pena de dez anos. Porém, essa pena era flexível, não terminando antes, mas sim, com o risco absurdo de se prolongar por mais dez anos. Para isso, bastava que um dos diretores ou oficiais do campo cismasse que algum prisioneiro merecia o acréscimo de mais dez anos.

O romance escancara de forma inédita na literatura, os estarrecedores aspectos do sistema de repressão Stalinista. O personagem acorda pela manhã com um sentimento diferente dentro si. Não consegue identificá-lo. Não sabe se é a dor de sua alma, que desperta para mais um dia de sofrimento e luta pela sobrevivência, ou se é o corpo, reclamando a falta de alimentos ou da embriaguês de uma noite mal dormida.

O frio lá fora, cortante e desanimador. Ao toque da alvorada todos os homens deviam se enfileirar fora das barracas e esperar pela contagem. O termômetro do campo, com seus ponteiros marcando – 30°C apresentava a condição perfeita para o trabalho a céu aberto. Guardas armados com metralhadoras e cães farejadores, que arreganhando os dentes afiados, pareciam zombar dos prisioneiros enregelados.

As únicas luzes fora dos dormitórios, que abrigavam mais de 40 homens, mas algo durante a leitura nos leva a crer que essas acomodações só poderiam comportar humanamente uns 15 homens, eram luzes dos holofotes das torres de vigia. Após a contagem feita era hora de tomarem o café da manhã.

A trama é desenvolvida de forma brilhante. Cada momento do livro é crucial para seu completo entendimento. Nada é demais ou de menos. Durante a alimentação os prisioneiros refletem sobre suas últimas refeições fora do campo. Sonham com a liberdade, em abraçar suas esposas, filhos e até mesmo em poder dormir sem saber que hora acordar.

As tigelas se amontoam, e muitas delas nem sequer são lavadas de forma higiênica. Para forrar o estômago, um caldo ralo e sem valor nutritivo, uma papa de aveia com água e 200 gramas de pão duro e enegrecido. O clima de tensão dentro do refeitório, onde os roubos de “ração” são comuns, chega a sufocar durante a leitura, graças a maestria narrativa de Soljenítsin.

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Dormitório dos prisioneiros. Os colchões de serragem eram abrigo para percevejos e outras pragas.

Em certa passagem do livro, Ivan Denísovitch guarda um pedaço de pão negro e duro dentro de um bolso secreto, que ele próprio costurara durante algumas noites. As roupas que usam diariamente em suas funções não são suficientes para conter o a violência do frio. As botas de couro curtido muitas vezes não cabem nos pés, o que torna ainda mais penoso o trabalho diário.

Alguns personagens secundários do livro também merecem atenção. Imagine-se rodeado de toda a sorte de homens. Ucranianos, estoianos, russos, poloneses e caucasianos, cada um com um passado doloroso preso à garganta e as esperanças e a tolerância fugindo de seus corações como pássaros de uma gaiola.

Tiúrin, um líder nato, comanda os homens diariamente, servindo como escudo para todos os companheiros de turma. É ele que com sua liderança garante muitas vezes “melhores” condições de trabalho no campo. A amizade entre os homens, apesar das diferenças de idade e pátria, é um aspecto admirável.

Aliocha, um batista que diariamente lê uma cópia manuscrita do Novo Testamento, vive preso às escrituras. Um religioso que acredita piamente que Deus o colocou dentro do campo para sua alma. Desse personagem provem uma bela passagem, em que, após ter ouvido Ivan Denísovitch orar baixinho em seu beliche, inicia um belo debate sobre fé e poder Divino.

“Mas, Ivan Denísovitch, você não ora com fervor. E é por isso que as suas suplicas ficam sem resposta. Não deve deixar de dizer outras orações. Se tem fé autêntica, diga a uma montanha que se mova. E ela se moverá…”

Chukhov sorriu e enrolou outro cigarro. Depois pediu fogo ao estoiano.

“Deixe de conversas, Aliocha. Nunca vi uma montanha mover-se. Bem, para ser franco, afirmo-lhe que nunca na minha vida vi uma montanha. Mas você, que rezou no Cáucaso com toda essa seita de batistas a que pertence, viu alguma vez, uma única que fosse, uma montanha mover-se?”

Esse é apenas um trecho dos melhores momentos do romance, que apesar de narrar somente um dia na vida de Ivan Denísovitch, não deixa de fora quase nenhum assunto de caráter humano.

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Prisioneiros se alimentando num dos refeitórios pouco antes de irem para o trabalho diário.

Soljenítsin nos ajuda a refletir sobre a condição humana de Ivan, que segundo a história do autor, é a sua própria condição. Condição essa que nos obriga sentir um pouco da dor que ele próprio sentiu durante os anos em que viveu aprisionado.

Nos leva também a questionamentos sobre o que é de fato importante em nossas vidas. Pois para um encarcerado, um pedaço de pão era um valioso tesouro. Um cigarro pela metade, jogado sobre a neve, servia para um regozijo noturno.

Numa outra passagem, talvez uma das mais singelas e tristes do livro, um jovem enfermeiro recusa-se a dar um atestado de dispensa por dores a Ivan. O personagem sai da sala, cabisbaixo e com um profundo vazio na alma.

Tudo que queria na verdade, era permanecer mais alguns minutos dentro da sala branca, cheirosa e quente da enfermaria. Em sua mente, apenas uma indignada pergunta. “Como se pode esperar que um homem que sente calor compreenda um que sente frio?

Ao término da história, o leitor se sentirá profundamente triste e indignado em saber que, de diversos modos, fatos como os que Ivan e seus companheiros viveram ao longo das 190 páginas, ainda se repetem, de forma mais branda ou não, camuflada ou não, em diversos lugares do mundo.

O que Alexandre Soljenítsin quis deixar ao mundo foram documentos literários verdadeiros, que segundo ele, não tinham pretensão alguma de torná-lo famoso. Entretanto, mais tarde, em 1971, o conjunto de sua obra lhe rendeu o prêmio Nobel.

Um dia na vida de Ivan Denísovitch é um livro brilhante, um relato potente e humano sobre amizade, esperança e luta pela sobrevivência. Texto belamente escrito, sobre seres humanos comuns injustamente forçados a tornarem-se “animais”. Mas acima de tudo, é uma inquietante mensagem, sobre o que o homem não deve fazer no presente para “corrigir erros” que talvez ele mesmo possa cometer no futuro.

Felipe Terra Escrito por:

Professor e amante da arte literária, atua na área da educação desde 2011. Viciado na música de Bach, Mozart e Chet Baker, e na literatura de Raymond Chandler, Ross Macdonald e Paul Auster. Ama escrever e acredita que poderia ler mais, porém, precisa dormir, infelizmente. Consegue passar horas jogando pôquer ou xadrez com os amigos. Degustar pizzas de queijo e bacon é um dos passatempos prediletos em horas de fome extrema.

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